Lide em jurisdição voluntária ou graciosa

0
470

Última Atualização 13 de abril de 2025

A chamada pretensão resistida é, segundo a visão tradicional adotada no Brasil, um dos requisitos necessários para que se possa propor uma ação contenciosa — ou seja, aquela em que há conflito de interesses. Essa ideia está diretamente ligada à teoria segundo a qual só se justifica o uso do processo quando há efetiva oposição entre o que uma parte quer e o que a outra recusa.

Esse entendimento é fortemente influenciado pela doutrina de Carnelutti, que via a existência de uma controvérsia — a chamada “lide” — como elemento indispensável para que o Judiciário pudesse ser acionado para solucioná-la. No entanto, essa concepção foi alvo de diversas críticas, inclusive em seu país de origem, como as feitas por Calamandrei, que sustentava que a noção de lide dizia mais respeito à sociologia do que ao direito propriamente dito.

Apesar disso, a teoria que exige a presença da lide ainda tem grande força no Brasil, especialmente entre juristas ligados a uma tradição mais clássica. Por outro lado, há correntes doutrinárias, ainda que minoritárias, que defendem ser possível o exercício do direito de ação mesmo sem a presença de uma resistência formal, bastando, por exemplo, a simples incerteza sobre a situação jurídica.

Assim, embora a pretensão resistida continue sendo o modelo dominante para se justificar a existência de uma ação contenciosa, há espaço para debates teóricos que propõem uma visão mais ampla e menos dependente da existência de um litígio em sentido estrito.

A jurisdição voluntária, também chamada de jurisdição graciosa, é aquela em que não há conflito entre as partes. Nela, o Judiciário atua para conferir validade, segurança ou efeitos jurídicos a determinados atos ou situações, mesmo sem existir uma lide propriamente dita. Nessas hipóteses, o juiz exerce função de fiscalização, controle ou chancela, e não de julgamento de um litígio. Exemplos comuns de jurisdição voluntária incluem a homologação de testamento, a autorização judicial para venda de bens de menores e os pedidos de suprimento de consentimento em casos de casamento. Ainda que não haja disputa, a presença do Judiciário garante que os atos sejam praticados conforme a lei.

FUNIVERSA (2009):

QUESTÃO CERTA:  A pretensão resistida é pressuposto para o exercício do direito de ação contenciosa.

É necessário a existência de lide para que haja a ação contenciosa, do contrário existirá apenas ação voluntária.

É a teoria de Carnelutti que recebeu severas críticas na Itália, como, p. ex., a de Calamandrei que afirma ser a existência da lide uma preocupação da sociologia, e não do direito. Interessante é que nem mesmo na Itália, onde surgiu, existem tantos adeptos da teoria de lide com pressuposto para o exercício do direito de ação, como aqui no Brasil, capitaneados pela escola paulista. Embora minoritária ainda, advirta-se que existe teoria  que não considera a  lide como pressuposto para o exercício do direito de ação.

CEBRASPE (2023):

QUESTÃO CERTA: Nos procedimentos de jurisdição voluntária ou graciosa, também conhecidos como administração judicial de interesses privados, não há lide.

Em regra, não há lide. No entanto, o STJ possui entendimento no sentido de que, em procedimento de jurisdição voluntária, pode surgir litígio, mudando-se, neste caso, a aplicação de princípios, que passam a ser os mesmos da jurisdição contenciosa” (REsp 1.453.193/DF, Terceira Turma, DJe22/8/2017).

Aprofundando em termos jurisprudenciais (tema correlato). É cabível a condenação de honorários em jurisdição voluntária? E a reconvenção, é possível?

  • Via de regra, neste tipo de procedimento – a saber, de jurisdição voluntária – não é cabível a condenação em honorários, pois estes têm espaço tão somente quando há uma resistência da parte oposta em relação à demanda posta contra si. Nestes termos: “a existência de litigiosidade excepciona a regra de não cabimento de condenação em honorários advocatícios” (REsp 1.924.580/RJ, Terceira Turma, DJe25/6/2021).
  • Ocorre que não é qualquer atitude da parte no processo que caracteriza litigiosidade, sendo necessário, para tanto, haver inequívoca resistência à pretensão deduzida na inicial. Por exemplo, a Terceira Turma do STJ já decidiu que “a mera alegação de ilegitimidade de parte citada como confrontante não torna litigiosa a demanda, não lhe cabendo, portanto, honorários sucumbenciais” (REsp 1.524.634/RS, Terceira Turma, DJe 3/11/2015).

E em relação à reconvenção? É possível haver pedido reconvencional em procedimento de jurisdição voluntária?

  • SIM. Havendo a transmutação do procedimento especial de jurisdição voluntária em verdadeiro processo de jurisdição contenciosa, a ele devem ser aplicados os seus princípios, admitindo-se a reconvenção (STJ. 3ª Turma. REsp 1.453.193/DF, DJe 22/8/2017).

Assim decidiu o STJ em seu último informativo do ano de 2022:

Em procedimento de jurisdição voluntária, quando a parte ré concorda com o pedido formulado na inicial, mas formula pedido autônomo: (I) se o Juiz não admitir o pedido autônomo como reconvenção e julgar apenas a pretensão autoral, não serão devidos honorários de sucumbência; (II) se o Juiz admitir o pedido autônomo como reconvenção e julgar ambas as pretensões, serão devidos honorários de sucumbência apenas na reconvenção e desde que configurado litígio quanto à pretensão reconvencional. REsp 2.028.685-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 22/11/2022, DJe 24/11/2022.

  • Se o pedido é autônomo, ele não caracteriza resistência à pretensão autoral, justamente por ser pretensão distinta que não influencia no julgamento dos pedidos formulados pelo autor. Assim, não forma litígio na ação principal e, por conseguinte, não enseja a condenação de pagar honorários sucumbenciais.
  • O pedido autônomo, no máximo, pode ser conhecido como reconvenção, hipótese em que poderá haver fixação de honorários de sucumbência, mas em razão da pretensão reconvencional, de forma independente, e não em razão do pedido principal.
  • Advertisement

Banca própria MPT (2023):

QUESTÃO CERTA: A respeito dos procedimentos de jurisdição voluntária ou graciosa, também conhecidos como administração judicial de interesses privados, considere as seguintes afirmações:

(I) Caracterizam-se pela inexistência de lide no conceito clássico de Francesco Carnelutti, como conflito de interesses qualificado pela pretensão resistida, não obstante possa haver certo grau de controvérsia entre os envolvidos.

(II) Não possuem partes na concepção técnico-processual do instituto, mas somente interessados, conquanto estes possam produzir provas das suas alegações, sendo lícito, entretanto, ao juiz investigar livremente os fatos e ordenar de ofício a realização de quaisquer provas.

(III) Em regra, suas decisões não podem ser objeto de ação rescisória, tendo em vista que não constituem decisões de mérito.

(IV) O julgador não está adstrito à observância do critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna.

Assinale a alternativa CORRETA: todas as assertivas estão corretas;

Solução:

ITEM I

Está certo porque, nos processos estruturais, geralmente não há uma lide no sentido clássico de Carnelutti (conflito de interesses com pretensão resistida). Em vez disso, busca-se resolver problemas coletivos complexos, como falhas em políticas públicas, em que o objetivo não é vencer o outro, mas reestruturar condutas ou instituições. Pode haver controvérsia, mas o foco é cooperativo, não adversarial.

ITEM II:

CPC: Art. 1.107. Os interessados podem produzir as provas destinadas a demonstrar as suas alegações;

Mas ao juiz é lícito investigar livremente os fatos e ordenar de ofício a realização de quaisquer provas.

ITEM III:

Sobre a impossibilidade de interposição da Ação Rescisória nos procedimentos de jurisdição voluntária, seguem abaixo alguns entendimentos dos Tribunais.

“Não cabe ação rescisória nos processos de jurisdição voluntária, eis que ela só é admissível contra sentenças de mérito, ou seja, aquelas em que há litígio e nas quais o decisum, resolvendo a Iide, produz coisa julgada material.” (TJSP – AR 54.979-1 – 4ª C. – Rel. Des. Freitas Camargo – RT 622/57).

“Como as sentenças proferidas nos procedimentos de jurisdição voluntária não fazem coisa julgada, são insuscetíveis de serem rescindidas por meio de ação rescisória.” (RTJ 94/677 in Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, RT, São Paulo, 1995, p. 603).

“4. Rescindibilidade da decisão proferida em jurisdição voluntária.

Tradicionalmente, diz-se que as sentenças proferidas em procedimento de jurisdição voluntária não se tornam indiscutíveis pela coisa julgada e, por isso, não poderiam ser alvo de uma ação rescisória. Essa é a orientação predominante.

Não é, porém, o entendimento aqui defendido. As sentenças proferidas nos procedimentos de jurisdição voluntária também são aptas à coisa julgada, tornando-se imutáveis e indiscutíveis. No procedimento de jurisdição voluntária, há pedido, existindo, portanto, mérito. A sentença que o acolhe está a resolver o mérito, encaixando-se na hipótese do art. 487, I, CPC/2015. A sentença de mérito, proferida em procedimento de jurisdição voluntária, torna-se imutável e indiscutível, produzindo coisa julgada.

Desse modo, transitada em julgado uma sentença num procedimento de jurisdição voluntária, cabe ação rescisória com a finalidade de desconstituir a coisa julgada que se produzir, em razão de alguma das hipóteses previstas no art. 966 do CPC/2015. 11 Note que, de acordo com o Código de Processo Civil de 2015, até mesmo decisões que não resolvem o mérito da causa podem ser objeto da ação rescisória. Nada há no texto do Código de Processo Civil que impeça a ação rescisória de decisão proferida em jurisdição voluntária, que é decisão de mérito, produzida após contraditório. “

http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RPro_n.252.10.PDF