Última Atualização 7 de junho de 2025
O Código Civil de 2002 foi estruturado com base em três grandes princípios orientadores: a eticidade, a sociabilidade e a operabilidade. Um desdobramento claro do princípio da eticidade é a vedação ao comportamento contraditório e a proibição de que alguém se beneficie da própria torpeza — regra expressa na máxima latina nemo auditur propriam turpitudinem allegans. Isso significa, em termos simples, que o ordenamento jurídico não admite que alguém tire proveito de um ato ilícito que ele mesmo praticou ou do qual participou conscientemente. Essa diretriz é visível em diversos dispositivos legais e decisões jurisprudenciais, mas não é absoluta: admite exceções importantes quando valores públicos de maior relevância estiverem em jogo, como a proteção da ordem pública e a defesa da legalidade objetiva.
Em certos casos, mesmo que ambas as partes estejam de acordo e cientes da ilicitude, a nulidade do negócio jurídico pode ser declarada, pois a lei visa resguardar o interesse coletivo acima do interesse individual das partes. É o que ocorre, por exemplo, nas situações em que o objeto do contrato viola diretamente normas de ordem pública, como se verifica na simulação (caso i) ou na venda de lote em desmembramento não registrado (caso iii). No primeiro exemplo, a simulação configura uma causa de nulidade absoluta, e, ainda que o vendedor tenha participado ativamente do ato simulado, a jurisprudência entende que a nulidade pode ser alegada por qualquer das partes, justamente porque a validade do negócio não pode prevalecer sobre a evidência de que houve fraude ao ordenamento. Já no terceiro exemplo, a venda de lotes irregulares, mesmo que tenha ocorrido entre particulares plenamente conscientes da ilegalidade, é nula de pleno direito, conforme estabelece o art. 37 da Lei nº 6.766/1979. Essa nulidade independe da ciência das partes, pois visa proteger o ordenamento urbanístico e garantir a regularidade dos parcelamentos do solo.
A situação do menor, por sua vez, é completamente distinta (caso ii). Ainda que ele tenha agido com dolo ao tomar um empréstimo, o ordenamento jurídico brasileiro o protege por reconhecer sua especial condição de vulnerabilidade. O menor de idade, salvo nas hipóteses legais de emancipação, é relativamente incapaz, e essa incapacidade implica a necessidade de assistência para a prática de certos atos jurídicos. Portanto, mesmo que tenha celebrado um empréstimo de forma maliciosa, ele não está impedido de invocar a sua própria condição para afastar os efeitos da obrigação, porque a norma que o protege tem caráter cogente e não pode ser afastada pela alegação de má-fé individual. Aqui, a aplicação do princípio da vedação à torpeza cede lugar à função protetiva da norma.
Dessa forma, observa-se que o princípio segundo o qual ninguém pode se beneficiar da própria torpeza é relativizado em casos que envolvem nulidades absolutas, derivadas da proteção à ordem pública, como nos casos de simulação ou de venda de loteamento irregular, mas não se aplica quando há norma protetiva em favor de pessoa em situação jurídica de especial proteção, como o menor de idade, mesmo que tenha agido de má-fé.
FGV (2024):
QUESTÃO CERTA: O Código Civil de 2002 é informado por uma base axiológica que se preocupa com a operabilidade, a sociabilidade e a eticidade. Por isto, consagrou, em diversos dispositivos, que ninguém poderá se valer da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). Nesse contexto, considere três situações:
i) vendedor argui a simulação do negócio jurídico em face do comprador;
ii) menor de idade pretende se exonerar de restituir o que houvera por empréstimo maliciosamente celebrado com pessoa maior, sem assistência de seus pais;
iii) alienante de bem imóvel situado em loteamento irregular e compreendido em área de domínio público argui nulidade do negócio jurídico celebrado com instrumento particular.
Nesse caso, o princípio segundo o qual ninguém poderá se beneficiar da própria torpeza:
é excepcionado apenas pelas situações i e iii;
Solução:
A compra e venda de loteamento não registrado é nula, independentemente de ter sido firmada entre particulares que estavam cientes da irregularidade do imóvel no momento do negócio jurídico. STJ. 3ª Turma. REsp 2.166.273-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/8/2024 (Info 829).
Resumindo, ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, mas, poderá alegar o reconhecimento de atos nulos, afinal de contas são de ordem pública.
i – simulado é nulo
iii: Lei de Loteamento: “Art. 37. É vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado”. com reforço da júris:
Caso hipotético: João dividiu irregularmente sua terra em lotes e vendeu uma parte para Regina, que estava ciente da situação irregular. No contrato, havia inclusive uma cláusula expressa informando sobre a irregularidade do loteamento.
Ocorre que, meses depois, Regina ingressou com ação pedindo a anulação do contrato e devolução dos valores pagos.
O STJ afirmou que o contrato era nulo não importando o fato de a compradora estar ciente da irregularidade. Isso porque o art. 37 da Lei nº 6.766/79 proíbe expressamente a venda de lotes não registrados. Logo, o objeto do contrato é ilícito, pois viola norma legal.
A ciência prévia do comprador sobre a irregularidade não valida o negócio.
Vale ressaltar, por fim, que a Lei nº 6.766/79 se aplica mesmo para negócios celebrados entre particulares, não sendo restrito a empreendimentos imobiliários.
STJ. 3ª Turma. REsp 2.166.273-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/8/2024 (Info 829).
Obs.: Simulação e venda irregular → Exceção ao princípio.
Menor protegido → Não é exceção, porque a lei o ampara!