Última Atualização 2 de julho de 2023
Imagine a seguinte situação adaptada:
O Estado de Pernambuco celebrou convênio com a União por meio do qual recebeu determinadas verbas para realizar projetos de interesse público no Estado, assumindo o compromisso de prestar contas da utilização de tais valores perante a União e o TCU.
Ocorre que o Estado não prestou contas corretamente, o que fez com que a União o inserisse no CAUC.
Com a inscrição no CAUC, o Estado-membro ficou impedido de contratar operações de crédito, celebrar convênios com órgãos e entidades federais e receber transferências de recursos.
Antes de prosseguirmos, o que é o CAUC?
CAUC é a sigla de Cadastro Único de Exigências para Transferências Voluntárias.
O CAUC é um instrumento de consulta, por meio do qual se pode verificar se os Estados-membros ou Municípios estão com débitos ou outras pendências perante o Governo federal.
O CAUC é alimentado com as informações constantes em bancos de dados como o SIAFI e o CADIN.
Se houver, por exemplo, um atraso do Estado ou do Município na prestação de contas de um convênio com a União ou suas entidades, essa informação passará a figurar no CAUC e ele ficará impedido de receber verbas federais.
Em uma alegoria para que você entenda melhor (não escreva isso na prova!), seria como se fosse um “Serasa” de débitos dos Estados e Municípios com a União, ou seja, um cadastro federal de inadimplência.
Ação proposta pelo Estado-membro
O Estado-membro não concordou com a inscrição no CAUC e ajuizou ação ordinária contra a União questionando essa inclusão.
Os dois principais argumentos da ação proposta foram os seguintes:
a) Violação ao devido processo legal, pois houve inscrição no referido cadastro sem que o TCU tenha encerrado a tomada de contas especial instaurada para apurar o fato;
b) Violação ao princípio da intranscendência subjetiva das sanções, uma vez que o inadimplemento ocorreu em gestão anterior (era outro Governador).
Vejamos agora algumas questões jurídicas envolvendo o tema:
Quem será competente para julgar essa ação?
O STF, nos termos do art. 102, I, “f”, da CF/88:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;
Toda ação envolvendo União e Estados em polos distintos será julgada originariamente pelo STF com base no art. 102, I, “f”, da CF/88?
NÃO.
Para se caracterizar a hipótese do art. 102, I, “f”, da CF/88, é indispensável que, além de haver uma causa envolvendo União e Estado, essa demanda tenha densidade suficiente para abalar o pacto federativo. Em outras palavras, não é qualquer causa envolvendo União contra Estado que irá ser julgada pelo STF, mas somente quando essa disputa puder resultar em ofensa às regras do sistema federativo.
Confira trecho de ementa em que se revela essa distinção:
“Diferença entre conflito entre entes federados e conflito federativo: enquanto no primeiro, pelo prisma subjetivo, observa-se a litigância judicial promovida pelos membros da Federação, no segundo, para além da participação desses na lide, a conflituosidade da causa importa em potencial desestabilização do próprio pacto federativo. Há, portanto, distinção de magnitude nas hipóteses aventadas, sendo que o legislador constitucional restringiu a atuação da Corte à última delas, nos moldes fixados no Texto Magno, e não incluiu os litígios e as causas envolvendo Municípios como ensejadores de conflito federativo apto a exigir a competência originária da Corte.” (STF. Plenário. ACO 1.295-AgR-segundo, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 14/10/2010).
Mero conflito entre entes federados | Conflito federativo |
Trata-se da disputa judicial envolvendo União (ou suas entidades) contra Estado-membro (ou suas entidades). | Trata-se da disputa judicial envolvendo União (ou suas entidades) contra Estado-membro (ou suas entidades) e que, em razão da magnitude do tema discutido, pode gerar uma desestabilização do próprio pacto federativo. |
Ex: disputa entre a União e o Estado por conta de um aluguel de um imóvel. | Ex: ação proposta pelo Estado questionando sua indevida inclusão no CAUC, o que tem gerado o fim de repasses federais. |
Em regra, é julgado pelo juiz federal de 1ª instância. | É julgado pelo STF (art. 102, I, “f” da CF/88). |
No caso concreto, o STF entendeu que ele era competente para a ação. Isso porque, além da presença, em polos distintos, de Estado-membro e União, estava em jogo a inscrição do ente local em cadastro federal de inadimplência, o que impedia que ele contratasse operações de crédito, celebrasse convênios e recebesse transferências de recursos. Essa situação revela possível abalo ao pacto federativo, já que está mitigando (enfraquecendo) a autonomia do Estado-membro, a ensejar a incidência do art. 102, I, “f”, da CF/88.
Em tese, é possível que a União inscreva Estado-membro em cadastro federal de inadimplentes, como é o caso do CAUC ou do SIAFI?
SIM. A princípio, não existe qualquer ilegalidade no fato de a União proceder à inscrição do órgão ou ente (o qual se mostre inadimplente em relação a débitos ou deveres legais) nos cadastros de restrição. Também não há qualquer ilegalidade no fato de a União se recusar a celebrar convênios ou prestar garantias para entes públicos que estejam nessa situação.
No caso concreto, houve violação ao princípio do devido processo legal? Para que o Estado-membro seja incluído no cadastro restritivo, é necessário o encerramento do procedimento instaurado pelo TCU?
SIM. Viola o princípio do devido processo legal a inscrição de unidade federativa em cadastros de inadimplentes antes de iniciada e julgada tomada de contas especial pelo Tribunal de Contas da União (STF. 1ª Turma. ACO 2.159-MC-REF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 02/06/2014).
Em casos como esse, mostra-se necessária a tomada de contas especial e sua respectiva conclusão, a fim de reconhecer que houve realmente irregularidades. Só a partir disso é possível a inscrição do ente nos cadastros de restrição ao crédito organizados e mantidos pela União.
O que é o princípio da intranscendência subjetiva das sanções? No caso concreto, houve violação a esse princípio?
SIM. O princípio da intranscendência subjetiva impede que sanções e restrições superem a dimensão estritamente pessoal do infrator e atinjam pessoas que não tenham sido as causadoras do ato ilícito. Assim, o princípio da intranscendência subjetiva das sanções proíbe a aplicação de sanções às administrações atuais por atos de gestão praticados por administrações anteriores. Não se pode punir novos gestores e nem o município por conta de pendências ou irregularidades de gestões anteriores.
A inscrição do Estado de Pernambuco no CAUC ocorreu em razão do descumprimento de convênio celebrado por gestão anterior, ou seja, na época de outro Governador. Ademais, ficou demonstrado que os novos gestores estavam tomando as providências necessárias para sanar as irregularidades verificadas.
Segundo o Min. Luiz Fux, “não se pode inviabilizar a administração de quem foi eleito democraticamente e não foi responsável diretamente pelas dificuldades financeiras que acarretaram a inscrição combatida”.
Logo, deve-se aplicar, no caso concreto, o princípio da intranscendência subjetiva das sanções, impedindo que a Administração atual seja punida com a restrição na celebração de novos convênios ou recebimento de repasses federais.
Outro exemplo de aplicação do princípio
Além do caso acima explicado, o princípio da intranscendência subjetiva das sanções pode ser aplicado também nas situações em que uma entidade estadual/municipal (ex: uma autarquia) descumpriu as regras do convênio e a União inscreve não apenas essa entidade, como também o próprio ente (Estado/Município) nos cadastros restritivos. Nesse sentido:
(…) O postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator. Em virtude desse princípio, as limitações jurídicas que derivam da inscrição, em cadastros públicos de inadimplentes, das autarquias, das empresas governamentais ou das entidades paraestatais não podem atingir os Estados-membros, projetando, sobre estes, consequências jurídicas desfavoráveis e gravosas, pois o inadimplemento obrigacional – por revelar-se unicamente imputável aos entes menores integrantes da administração descentralizada – só a estes pode afetar.
Os Estados-membros e o Distrito Federal, em consequência, não podem sofrer limitações em sua esfera jurídica, motivadas pelo só fato de se acharem administrativamente vinculadas a eles as autarquias, as entidades paraestatais, as sociedades sujeitas a seu poder de controle e as empresas governamentais alegadamente inadimplentes e que, por tal motivo, hajam sido incluídas em cadastros federais (CAUC, SIAFI, CADIN, v.g.). (…)
(STF. Plenário. ACO 1848 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 06/11/2014)
Segundo a posição que prevalece no STF, se a irregularidade no convênio foi praticada pelo gestor anterior e a gestão atual, depois que assumiu, tomou todas as medidas para ressarcir o erário e corrigir as falhas (Ex.: apresentou todos os documentos ao órgão fiscalizador, ajuizou ações de ressarcimento contra o antigo gestor etc.), neste caso, o ente (Estado ou Município) não poderá ser incluído nos cadastros de inadimplentes da União.
Assim, de acordo com esta acepção, o princípio da intranscendência subjetiva das sanções proíbe a aplicação de sanções às administrações atuais por atos de gestão praticados por administrações anteriores. (info 791)
Vale ressaltar, no entanto, que o Min. Marco Aurélio recentemente manifestou-se contrariamente à tese afirmando que: “a inscrição do nome do Estado-Membro em cadastro federal de inadimplentes em face de ações e/ou omissões de gestões anteriores não configura ofensa ao princípio da intranscendência.” (info 825).
CEBRASPE (2016):
QUESTÃO CERTA: Quando a União firma um convênio com um estado da Federação, a relação jurídica envolve a União e o ente federado e não a União e determinado governador ou outro agente. O governo se alterna periodicamente nos termos da soberania popular, mas o estado federado é permanente. A mudança de comando político não exonera o estado das obrigações assumidas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem entendido que a inscrição do nome de estado-membro em cadastro federal de inadimplentes devido a ações e (ou) omissões de gestões anteriores não configura ofensa ao princípio da administração pública denominado princípio do (a): intranscendência.
O princípio da intranscendência diz que:
Não é permitido aplicar sanção à gestão atual por inadimplência de gestão passada;
Não é possível incluir o nome do ente em cadastro de inadimplente por conta de dívida não quitada de sua autarquia devedora;
Não confundir: ato de inscrição x medidas punitivas. O STF veda apenas as segundas (sanções), no que toca às gestões posteriores àquela que cometera a irregularidade;
Irregularidades cometidas por um dos Poderes não enseja a aplicação de sanções em outro.
CEBRASPE (2015):
QUESTÃO ERRADA: A respeito da organização administrativa, dos atos administrativos e dos contratos e convênios administrativos, julgue o item a seguir. Situação hipotética: Um Estado utilizou irregularmente verba recebida da União por meio de convênio e, por conta disso, foi declarado inadimplente. Assertiva: Nessa hipótese, o STF entende que se deve aplicar à gestão subsequente sanções por ato praticado pela administração anterior, mesmo que o novo gestor tome providências para sanar as irregularidades verificadas.
O princípio da intranscendência subjetiva impede que sanções e restrições superem a dimensão estritamente pessoal do infrator e atinjam pessoas que não tenham sido as causadoras do ato ilícito.Segundo o Min. Luiz Fux, “não se pode inviabilizar a administração de quem foi eleito democraticamente e não foi responsável diretamente pelas dificuldades financeiras que acarretaram a inscrição combatida”. (STF. Plenário. ACO 1848 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 06/11/2014).
CEBRASPE (2019):
QUESTÃO CERTA: Tendo como referência os princípios expressos e implícitos da administração pública e as disposições da Lei n.º 13.460/2017, assinale a opção correta acerca da participação, proteção e defesa do usuário de serviços públicos: Por força do princípio da intranscendência subjetiva das sanções, irregularidades praticadas pelos Poderes Legislativo e Judiciário não impõem sanções ao Poder Executivo.
Não se pode penalizar quem não foi responsável diretamente pelos fatos. O princípio da intranscendência subjetiva das sanções, consagrado pelo STF, inibe a aplicação de severas sanções às administrações atuais por ato de gestão anterior à assunção dos deveres públicos, ou mesmo por ato de gestão praticado por outro Poder, que não o Executivo.
STF, ACO 3.234, AC 2614/PE, rel. Min. Luiz Fux, 23.6.2015. (AC-2614).
CEBRASPE (2015):
QUESTÃO ERRADA: Situação hipotética: Um Estado utilizou irregularmente verba recebida da União por meio de convênio e, por conta disso, foi declarado inadimplente. Assertiva: Nessa hipótese, o STF entende que se deve aplicar à gestão subsequente sanções por ato praticado pela administração anterior, mesmo que o novo gestor tome providências para sanar as irregularidades verificadas.
Para o STF (AC 2614/PE, AC 781/PI e AC 2946/PI), o princípio da intranscendência subjetiva das sanções proíbe a aplicação de sanções às administrações atuais por atos de gestão praticados por administrações anteriores. Na visão do Supremo, o princípio da intranscendência subjetiva impede que sanções e restrições superem a dimensão estritamente pessoal do infrator e atinjam pessoas que não tenham sido as causadoras do ato ilícito.
FAUEL (2018):
QUESTÃO CERTA: Viola o princípio da intranscendência subjetiva das sanções a inscrição de Município em cadastro público de inadimplentes, com fundamento em inobservância de obrigações por parte de autarquia municipal.
FGV (2019):
QUESTÃO CERTA: O Supremo Tribunal Federal inibe a aplicação de severas sanções a entidades federativas por ato de gestão anterior à assunção dos deveres públicos do novo gestor, a fim de não dificultar sua governabilidade, caso esteja tomando as providências necessárias para sanar o prejuízo causado pela gestão anterior. De acordo com a doutrina de Direito Administrativo, trata-se da aplicação do princípio da administração pública da: intranscendência subjetiva das sanções;